quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Política e suas pornografias.

Eu vinha dentro do ônibus, de pé. O ônibus não estava cheio, mas eu vinha de pé.
O meu polegar estava encaixado entre as paginas da maravilhosa obra do Milton Hatoum, escritor manauara, e com uma mão só, eu vinha para casa lendo. De pé.
Eu demorei para perceber que, no degrau perto de mim, estava sentado um rapaz, de pés calçados com um chinelo porco, as unhas dos pés encardidas denunciavam algum sinal de mizéria, e era muito educado. Tratava as pessoas que passavam pelo lado dele, pedindo licença, por "senhor" e "senhora".
Envolvido pela minha leitura eu demorei para perceber que ele estava acompanhado de um senhor que estava sentado, no acento cedido bondosamente por alguém. O senhor, diferente do rapaz, era bem negro, com um bigode espesso e largo, que lhe cobria o lábio superior, parecendo uma daquelas escovas de engraxar sapato que ficam sempre guardadas na ultima gaveta de algum lugar inútil, e que a gente só usava para brincar, quando era criança.
Eu admito que meu instinto intrometido falhou, e eu não pude ouvir a conversa deles. Eu estava realmente infiltrado na minha leitura. Mas como é hábito meu, guardei o meu livro na bolsa alguns minutos antes de descer do ônibus. Aí sim comecei a prestar atenção.
Até que o rapaz me olhou e comentou o aumento do preço do ônibus prometido pelo Kassab. Dois reais e noventa centavos, previstos para dezembro, de fato, absurdo.
- Eu não tenho nem pros dois e setenta! Entrei pela porta de trás. - reclamou o menino, enquanto o senhor olhava mudo pela janela, chupando os lábios, como fazem os velhos. Eu brinquei com o menino:
- Ao invés de pagar passagem, eu junto o dinheiro que eu gastaria em um mês e compro meu próprio ônibus.
Ele riu pouco. Nem foi engraçado mesmo. Mas ele sorriu gostoso pela atenção. Daí ele se dirigiu ao velho:
- Que saco essas eleições pai! Não vai nem poder beber domingo!
O pai continuou olhando pela janela.
- E nem sei em quem votar pra deputado, vereador, essas "coisa".
Daí foi a vez do menino ficar olhando pela janela, e falar alto, sem se dirigir a ninguém, mas falando alto:
- Acho que vou votar nessa gostosa aí!
Estava chegando meu ponto, e eu queria saber que gostosa era essa! Não conseguia ver a placa com a foto. E ele atiçando:
- Nossa! É nessa gostosa mesmo que eu vou votar.
E foi aí que a placa veio chegando mais perto. O número era grande e a placa vermelha.
133, Marta Suplicy.
Falta de critério, de cidadania, de eleitorado consciente. Mas podia ser pior.
Podia ser a Erundina.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A graça da "flor jornal"

Assim que amanhecia o dia, vinha da cozinha o som do jornal, que triscava a porta, se arrastava lentamente por esta, até que repousava no tapete velho da entrada de serviço. A porta da escada se ouvia fechar devagarinho, tranquila como a manhã do Brooklin, e o zelador baiano se arredava na ponta dos pés. Mal tinham se apagado as luzes do hall, que clareavam as frestas ao redor da porta, e meu pai já estava a caminho. Abria a porta com o cuidado paterno de não acordar esposa e filha que ainda dormem. Eu, tomando café, sempre assistia.

Meu pai pegava o jornal como quem colhe uma flor.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Curiosidade de terceiro mundo

Meu pai me contou essa história quando eu era mais menino. Nunca me esqueci! Meu pai alimentou meu tesão pela critica, sem querer.
Os dois eram brasileiros. Alto escalão de uma multinacional, de passagem em Miami, a trabalho.
Qual lugar pode acolher melhor um brasileiro que Miami? Nem na casa de nossa mãe podemos nos sentir tão em casa. E eles se sentiam em casa.
O terno e a gravata ficaram no quarto do hotel, junto com a formalidade. Eles estavam na orla da praia, só os dois. Aproveitavam uma das melhores situações que se pode experimentar: falar alto, qualquer coisa, sem que ninguem entender porra nenhuma. A tão sonhada liberdade de expressão! Comentavam os biquinis e os topless, esbravejavam seus palavrões preferidos, falavam sobre o assunto da mesa ao lado!
E pediram cerveja, na beira da praia, em Miami beach. Um sol de rachar a cuca, sol carioca mesmo! Até perguntaram pela caipirinha, que os gringos nem suspeitavam como fazer. Um até tentou arriscar, em vão. Serviu suco de limão amarelo com meio quilo de açucar e uma dose exagerada de vodca, e o drink não teria mesmo outro destino que não fosse o canteirinho ali perto do quiosque, aonde o brasileiro cuidadosamente disfarçou enquanto derramava aquele veneno. Iam beber cerveja mesmo, porque cerveja, graças a deus, é sempre a mesma coisa em qualquer lugar. Especialmente depois da quinta!
Ja quase de saida, um deles chamou a atenção do outro. Apontou para o outro lado da larga avenida, um cego, sentado num banquinho alto, com uma pilha tambem alta de jornais ao seu lado. Ainda ao lado da pilha de jornais, estava uma cestinha. Observaram curiosos.
Passou um homem ao lado do cego, apressado, pegou um jornal, do bolso, tirou um dinheiro pouco e contado, depoistou na cestinha, e saiu. O cego só sorriu.
Passou um outro homem, terno e gravata, pegou um jornal do topo da pilha, deu bom dia para o cego, deixou uma porção de moedas na cestinha e saiu.
Mais um rapaz foi em direção ao ceguinho, pegou um jornal, e tirou da carteira uma nota. Sabe-se la de quantos dolares, mas era uma nota. Colocou a nota na caixinha, pegou umas moedas, e saiu. Dai eles não acreditaram!
-Porra! Voce viu isso? O cara fez o próprio troco!
Foram até o cego. Ambos falavam um ingles perfeito. Falaram em ingles. Deram bom dia para o cego, viram que ele ja tinha certa idade. A barba grossa era grisalha, que contrastava com a sua pele bem preta. O seu cabelo estava todo dentro de uma grande touca que, apesar de rustica, era muito bem custurada com linhas grossas. Perceberam que o vendedeor de jornais era simpaticissimo.
- Mas o senhor não tem medo que alguem pegue um jornal?
O velho pareceu nao entender muito bem. Respondeu calmamente:
- Oras, claro que não! O jornal ta ai para as pessoas pegarem!
Ele nao tinha entendido mesmo.
- Digo, se o senhor nao tem medo que alguem pegue um jornal e saia sem pagar.
- Sem pagar o jornal? - o ceguinho enrugava a testa, sem entender o que o extrangeiro falava.
- É! Pegar um jornal, chacoalhar a cestinha só para fazer barulho, e sair sem pagar.
Dai o cego entendeu, e pareceu indignado.
- O senhor fala em me roubarem?
- É, exatamente.
- Roubarem um jornal meu?
- Isso, pegarem sem o senhor ver.
O cego parecia não acreditar. Depois de um silencio meio constrangedor, ele perguntou, depois de hesitar um bocado:
- De onde vocês são?!
A vergonha veio como uma flechada. Não sabia o que dizer. Pensou alguns instantes, com o rabo no meio das pernas. Agradecia pelo cego nao poder ver sua cara de derrota. Mas sem deixar de lado seu instinto brasileiro, respodeu convicto:
- Argentina. I'm from Argentina.